Histórias de África Bahia

domingo, 16 de novembro de 2014

A Força da Escravidão - Sidney Chalhoub

A revolta de 1852, a contra força da escravidão


Lei do cativeiro: o grande medo de 1852 

A lei do cativeiro, um decreto do governo imperial de janeiro de 1852, instituía o registro obrigatório de nascimento e óbito em todo o país: “determinava-se a realização de um recenseamento geral do império”. A iniciativa visava recolher informações sobre a população do país.

No caso dos recém-nascidos de condição livre, coletava-se: data, hora, lugar de nascimento, nome, sexo, nome dos pais (se legítimo), ou só da mãe.

No caso de crianças escravas, tudo igual, mas acrescentava-se o nome do proprietário, a cor do recém-nascido e seu estado civil: livre ou escravo.

Em boa parte do Império, houve motins. A população se levantou contra os registros, a exemplo de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Ceará e Minas Gerais; além de grande tensão e alerta geral terem sido criados em todo o país. Leis eram anunciadas pelos vigários durante as missas e grupos de amotinados vigiavam e impediam a leitura da lei do registro civil. Escrivães e juízes de paz se viram ameaçados. Assim a população procurava, por iniciativa própria, obstar o registro obrigatório de nascimento e óbito.

A causa dos motins segundo o ministro da justiça, Eusébio Queiroz, era de que havia um boato de que o registro só tinha por fim escravizar a gente de cor, chegando mesmo a apelidar o decreto de “Lei do cativeiro”.

Na época, o ministro dos Negócios do Império, o visconde de Mont’Alegre, chegou a dizer que havia, em todo o território nacional, muita gente de cor livre com medo de ser levada a escravidão, “pois eram negros que tinham sua vida pautada pela ameaça do cativeiro”. O objetivo dos revoltosos era evitar a vigência do registro civil; a estratégia, impedir a divulgação do decreto pelos párocos e a sua aplicação nos juízos de paz; o motivo, temor de serem escravizados.

Duas queixas prevaleciam entre os amotinados. A primeira era de que a finalidade dos registros seria cativar pessoas livres, a segunda, ficava por conta do ônus de pagarem a certidão ao escrivão de paz na ocasião dos óbitos. No primeiro caso, os amotinados acreditavam haver uma ligação clara entre o fim do tráfico africano de escravos, recentemente obtido por meio da aplicação da lei 1850, lei Eusébio de Queiróz, que proibia o tráfico para o Brasil, e o regulamento do registro civil. Talvez porque atribuíssem a extinção do tráfico apenas por conta da pressão inglesa, visto que os ingleses não deixavam mais entrar africanos, e por conta de que temiam o cativeiro de seus próprios filhos (pardos livres, jovens e adultos).

Assim, O presidente de Pernambuco, Victor d’Oliveira, interpretava sobre os eventos turbulentos que ocorriam na comarca de Pau d’Alho: “onde mais notavelmente se apresentou em massa a população clamando contra aquele decreto, por ela apelidado – Lei do cativeiro – espalhava-se, geralmente, que a lei mandava registrar os nascimentos para escravizar a gente de cor, que d’ora em diante nascesse”.

A força da escravidão, Sidney Chaloub [1]

O livro de Chaloub destaca como a força da escravidão tornava precária a experiência de liberdade de negros livres e pobres no Brasil oitocentista. Havia uma lógica social e política que produzia uma espécie de interdito [silêncio consensual] que tornava precária a condição do liberto. Delicadas eram as fronteiras entre o trabalho escravo e o trabalho livre, incertas, inseguras, alternadas. Várias eram as apropriações sociais que se desenrolavam entre as categorias de ‘escravo’ e ‘livre’, tais como ‘liberto’ (alforriado), ‘ingênuo’ (fruto de ventre livre), ‘africano livre’ (contrabandeado após a lei de 1831), ‘preto livre’ (não contrabandeado, nem escravo), ‘boçal’ (africano traficado e recém-chegado), ‘ladino’ (africano traficado há muito tempo no país), ‘africano’ e ‘crioulo’ (nascido no Brasil), revelando as estratégias e lógicas das experiências de sobrevivência dos sujeitos naquele período.

A precariedade da liberdade era uma constante para os negros no Brasil do século XIX. Eram frequentes histórias de pessoas livres presas por suspeição de que fossem escravas e de indivíduos que se declaravam livres, mas acabavam leiloados como escravos.

A Lei de 7 de novembro de 1831 já proibia o tráfico africano. A lei, além de declarar livres todos os escravos vindos de fora do império, também determinava penas contra os importadores e traficantes. Mas não foi isso que se viu. Nas duas décadas seguintes, sob um silêncio consensual geral, mais de 750 mil africanos entraram ilegalmente no país. “Os sentidos e a intrincada engenharia institucional e política necessária para permitir que autoridades e cidadãos ditos de bem fingissem não ver o que se passava diante de seus olhos”, perpetuavam o sofrimento dos negros. E assim manteve-se, durante longos anos, muita gente escravizada ao arrepio da lei. Lembrando que, no sudeste, uma nova onda, a expansão do café, reavivava o crime.

Tudo isso parecia justificar a história daqueles amotinados de 1852 por todo país e, especialmente, em Pau d’Alho, Pernambuco. Pretos e pardos pobres que reagiam contra a aplicação do censo, por desconfiança que seu desígnio fosse reduzi-los à escravidão.

O capítulo final é dedicado ao pensamento e as palavras do contemporâneo Machado de Assis, reproduzida a partir de sua obra Memórias póstumas de Brás Cubas. Nele, o autor revela a complexidade das vivências e reflexões de um homem dissimulado, anestesiado, como tanto outros que naqueles tempos buscavam sentido numa sociedade que parecia notória, justificável, vivendo suas vidas miúdas, ajustáveis, modelares, em meio a um mundo de ricos contrabandistas de africanos e senhores de gente ilegalmente reduzidas ao cativeiro.




Dez Capítulos: 
2. Escravismo
3. Sob o domínio da ilegalidade
4. Modos de Silenciar e não ver
5. Em 1850, a precisão de calar sobre 1831
6. O que os escravos sabiam
7. O que os ingleses viam
8. Que se cumpra a lei
9. Liberdade precária
10. Machado de Assis (arremate)



[1] CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista, 1 ed., --São Paulo, Cia da Letras, 2012.

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