Histórias de África Bahia

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O Bella Miquelina

dois brigues, tipo Bella Miquelinacom dois, por vezes três mastros
Tráfico de africanos, tensões, medos e luta por liberdade nas águas da Baía de Todos-os-Santos em 1848 [1], de Dale T. Graden e Paulo Cesar Oliveira de Jesus, é um dos dez belos textos, compostos à luz da nossa atual historiografia baiana, que fazem parte do volume Barganha e Querelas da Escravidão: Tráfico, Alforria e Liberdade, séculos XVIII & XIX, organizado pelas professoras Lisa Earl Castillo, Gabriela dos Reis Sampaio e Wlamyra Albuquerque.
O mundo atlântico e o tráfico. Um mundo de gente simples escravizada, de terríveis monstros negreiros, de ricos e cruéis traficantes e beneficiários de todas as classes e tons de pele que agiam confiantes de estarem certos como que inconscientes de suas loucuras. E procurando esclarecer questão tão ampla, o tráfico que concebíamos e avidamente sustentávamos, tenho investido e me concentrado na análise crítica de episódios particulares e significativos, como que partindo do pequeno para conhecer o grande, a exemplo do relato de Dale T. Graden e Paulo Cesar Oliveira de Jesus sobre o apresamento do navio negreiro Bella Miquelina, em 1848, em águas provinciais, pelo cruzador britânico Grecian, muitos anos depois de promulgada a lei de 1831, que proibia o tráfico atlântico, na tentativa de explicar o inexplicável que cegava homens “probos” capazes de tamanha atrocidade.
Negreiros, dos mais variados modelos e tamanhos, mal disfarçados de legalidade; armadores e traficantes capazes de grandes e pequenos investimentos; capitães e marinheiros, desdenhosos da lei; e escravos diversos, várias etnias, todas as idades, alguns conduzindo seus próprios escravos, e todos "atentos às contradições do sistema", são alguns desses personagens que também me interessam por terem suas micros trajetórias de vidas relacionadas com o nefasto e grandioso drama da escravidão. A partir da história de alguns acontecimentos aparentemente isolados, mas representativos, a historia moderna procura conhecer um pouco desse mundo que construímos e o legado fatídico que nos revela um pouco daquilo que somos hoje.
o triste acondicionamento da "carga"
Bella Miquelina foi "uma embarcação de grande porte que fez várias viagens entre a África e a Bahia antes de ser apreendida pelos ingleses nas águas da Baía de Todos os Santos", em abril de 1848. Tempos em que traficantes ousados "realizavam contravenções escancaradas" em conivência com as autoridades brasileiras e a própria sociedade que se beneficiava com o tráfico. Interessante aqui também é o caso do serra-leonês John Freedman, escravo condutor de barcas no porto de Salvador que soube se aproveitar das indeterminações legislativas em pleno momento de captura e tensão e pediu asilo à nau de guerra inglesa que escoltava o tumbeiro apreendido.
O Bella Miquelina foi apreendido, pelo cruzador de sua Majestade britânica Grecian, quando retornava da África com cerca de 500 cativos miseravelmente comprimidos nos porões. Foi conduzido ao porto de Salvador numa situação de emergência. Não que o porto baiano fosse um lugar seguro para sua ancoragem e socorro, muito pelo contrário, a estadia ali não deveria se estender por muito tempo, havia o risco da “carga” ser saqueada. Porém, a nau combalida, em final de viagem, se encontrava extremamente necessitada de mantimentos e água, e precisava ser abastecida de imediato. Já ancorada no porto, uma breve investida surpresa de sessenta homens em duas barcas tentou recuperar o tumbeiro do controle britânico, mas foram rechaçados pelos marinheiros de bordo e também pela aproximação de uma fragata brasileira Constituição, evitando destino incerto para aqueles pobres traficados. No dia seguinte, um africano remou até o Grecian, se dizendo ser John Freedman, “súdito de sua majestade britânica vivendo ilegalmente escravizado no Brasil, e solicitou proteção, no que foi prontamente atendido”.
Sob a pressão indignada do povo baiano, vendo sua soberania afrontada, Manoel Messias de Leão, então presidente da província da Bahia, reclamou às autoridades britânicas a entrega da embarcação, mas seu capitão, L. S. Tindal, o comandante do todo poderoso Grecian, não deu ouvidos e, tão logo reabasteceu, partiu em direção ao Rio de Janeiro levando consigo o escravo oportunista e o todo prenhe de dores e tristezas Bella Miquelina. Naqueles tempos, apesar de proibido, era comum o vai e vem dos tumbeiros nas costas da província baiana. Os traficantes agiam seguros de impunidade. Por outro lado, havia um temor crescente na cidade causado pelo número cada vez maior de africanos circulando. O risco de tensões sociais, os negros somados eram como uma grande sombra de violenta rebelião que pairava sobre a cidade, e a possibilidade de introdução de novas doenças aumentavam com a chegada de cada tumbeiro abarrotado.
A tripulação do Bella Miquelina era composta por 29 pessoas. Eles faziam um verdadeiro bate-e-volta Província da Bahia/Costa Ocidental da África/Província da Bahia. Tinham que ser rápidos, isso ajudaria a diminuir os custos da viagem e a possibilidade de serem pegos por alguma embarcação do esquadrão antitráfico britânico. Mas toda essa rapidez levava em torno de dois meses, o que resultava no próprio sacrifício da “carga”. Em média, 10% dos negros transportados não chegavam à Bahia. Em geral, os barcos dedicados ao comércio do tráfico agiam em dupla cooperativada: um primeiro “navio deixava o porto de Salvador com produtos legalmente comercializáveis na costa africana e, camuflado em meio a estes, também levava mantimentos e equipamentos para realizar o transporte dos africanos. Dias depois, o verdadeiro navio negreiro partia em lastro para o litoral da África, e em determinado local recebia todo o aparato necessário ao transporte de cativos”.
Seguir viagem para o Rio de Janeiro após apreendido o barco contraventor era o procedimento básico protocolar da esquadra inglesa. Mas o mau tempo e as condições precárias em que se encontrava o Bella Miquelina alteraram os planos de navegação obrigando que o barco fosse conduzido ao porto de Salvador. No caminho, ainda sob forte tempestade marítima, comum àquela época do ano, as duas naus se separaram e o tumbeiro desprotegido da nave escolta chegou bem antes às águas tensas do ancoradouro baiano. A notícia logo se espalhou causando enorme comoção entre a população indignada, não pelas condições ultrajantes em que se encontravam aqueles miseráveis quinhentos africanos, mas por conta de verem a soberania de seu País sendo ultrajada pela arrogância inglesa. Desde 1845, após a aprovação pelo Parlamento britânico do Brasilian Slave Trade Act - Bill Abeerden, lei que proibia o tráfico transatlântico, que os ingleses desistiram das investidas diplomáticas e partiram para as vias de fato, ainda que os fatos ocorressem em território estrangeiro. A postura britânica exemplificada pela atuação do Grecian em águas brasileiras foi alvo de duras críticas daqueles que, de alguma forma, se beneficiavam do sistema escravista, a grande maioria dos baianos, e parte da imprensa que sustentava a continuidade da escravidão “defendendo que sua extinção só poderia ocorrer após uma série de preparativos, de forma a evitar prejuízos”.
Quanto aos negros escravizados a bordo do Bella Miquelina temos poucas informações. Segundo dados do Trans-Atlantic Slave Trade Database (TASTD), inicialmente o barco teria sido carregado no Golfo do Benim, Costa dos Escravos e, os sobreviventes, após longa sequência de infortúnios (o sequestro original, a marcha forçada até o local de embarque, a prisão à espera de destino ignorado, os porões completamente insalubres de comprimidas naus, a falta de alimentos, as doenças variadas e as tempestades em alto mar), foram finalmente libertados em Serra Leoa. Em meados do século XVIII, os navios negreiros “transportavam, em média, entre 1,5 e 2,5 africanos por toneladas”. “O Bella Miquelina, embarcação de 263 toneladas, refletia essa tendência ao ser abordada pelo cruzador britânico”. Nele, “possivelmente os traficados enfrentaram quarenta longos dias de confinamento sob as condições mais adversas”. Muitos deviam portar marcas e cicatrizes tribais. Cerca de 30% eram meninos e meninas.
Barganhas e Querelas da Escravidão

Esse é apenas um breve resumo de um dos dez capítulos escritos pelos membros do grupo de pesquisa Escravidão e Invenção de Liberdade, no segundo volume da série que tem como base o Programa de Pós-Graduação em História da Ufba. Os textos são acessíveis, reveladores, ricos em informações, fruto de pesquisa comprometida e apaixonada e, como se não bastasse, escritos quase como narrativas de aventura, o que ajuda a democratizar a literatura de academia. O primeiro volume, Escravidão e suas sombra [2], foi lançado em 2012. Vida longa a esse belo trabalho de resgate de nossa riqueza histórica esquecida sobre os escombros culturais da velha Bahia.




[1] Breve a partir de GRADEN, Dale T; e JESUS, Paulo Cesar Oliveira de, Tráfico de africanos, tensões, medos e luta por liberdade nas águas da Baía de Todos-os-Santos em 1848.  in: CASTILLO, Lisa Earl; SAMPAIO, Gabriela dos Reis; e ALBURQUEQUE, Wlamyra (Orgs.), Barganha e Querelas da Escravidão: Tráfico, Alforria e Liberdade, séculos XVIII & XIX, -- Salvador, EDUFBA, 2014.
[2] AZEVEDO, Elciene  e REIS, João José: Escravidão e suas Sombras. – Salvador, EDUFBA, 2012

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