Tráfico de africanos,
tensões, medos e luta por liberdade nas águas da Baía de Todos-os-Santos em
1848 [1], de Dale T. Graden e Paulo Cesar Oliveira de Jesus, é um dos dez belos textos, compostos à luz da nossa atual historiografia baiana, que fazem parte do volume Barganha e Querelas da Escravidão: Tráfico, Alforria e Liberdade, séculos XVIII & XIX, organizado pelas professoras Lisa Earl Castillo, Gabriela dos Reis Sampaio e Wlamyra Albuquerque.
O mundo atlântico e o
tráfico. Um mundo de gente simples escravizada, de terríveis monstros
negreiros, de ricos e cruéis traficantes e beneficiários de todas as classes e
tons de pele que agiam confiantes de estarem certos como que inconscientes de
suas loucuras. E procurando esclarecer questão tão ampla, o tráfico que
concebíamos e avidamente sustentávamos, tenho
investido e me concentrado na análise crítica de episódios particulares e
significativos, como que partindo do pequeno para conhecer o grande, a exemplo
do relato de Dale T. Graden e Paulo Cesar Oliveira de Jesus sobre o apresamento
do navio negreiro Bella Miquelina, em
1848, em águas provinciais, pelo cruzador britânico Grecian, muitos anos depois de promulgada a lei de 1831, que
proibia o tráfico atlântico, na tentativa de explicar o inexplicável que cegava
homens “probos” capazes de tamanha atrocidade.
Negreiros, dos mais variados
modelos e tamanhos, mal disfarçados de legalidade; armadores e traficantes capazes
de grandes e pequenos investimentos; capitães e marinheiros, desdenhosos da
lei; e escravos diversos, várias etnias, todas as idades, alguns conduzindo
seus próprios escravos, e todos "atentos às contradições do sistema",
são alguns desses personagens que também me interessam por terem suas micros
trajetórias de vidas relacionadas com o nefasto e grandioso drama da
escravidão. A partir da história de alguns acontecimentos aparentemente
isolados, mas representativos, a historia moderna procura conhecer um pouco
desse mundo que construímos e o legado fatídico que nos revela um pouco daquilo
que somos hoje.
o triste acondicionamento da "carga"
Bella Miquelina foi "uma embarcação de
grande porte que fez várias viagens entre a África e a Bahia antes de ser
apreendida pelos ingleses nas águas da Baía de Todos os Santos", em abril
de 1848. Tempos em que traficantes ousados "realizavam contravenções
escancaradas" em conivência com as autoridades brasileiras e a própria
sociedade que se beneficiava com o tráfico. Interessante aqui também é o caso
do serra-leonês John Freedman, escravo condutor de barcas no porto de Salvador
que soube se aproveitar das indeterminações legislativas em pleno momento de
captura e tensão e pediu asilo à nau de guerra inglesa que escoltava o tumbeiro
apreendido.
O Bella Miquelina foi apreendido,
pelo cruzador de sua Majestade britânica Grecian, quando retornava da África
com cerca de 500 cativos miseravelmente comprimidos nos porões. Foi conduzido
ao porto de Salvador numa situação de emergência. Não que o porto baiano fosse
um lugar seguro para sua ancoragem e socorro, muito pelo contrário, a estadia
ali não deveria se estender por muito tempo, havia o risco da “carga” ser saqueada.
Porém, a nau combalida, em final de viagem, se encontrava extremamente necessitada
de mantimentos e água, e precisava ser abastecida de imediato. Já ancorada no porto,
uma breve investida surpresa de sessenta homens em duas barcas tentou recuperar
o tumbeiro do controle britânico, mas foram rechaçados pelos marinheiros de
bordo e também pela aproximação de uma fragata brasileira Constituição,
evitando destino incerto para aqueles pobres traficados. No dia seguinte, um africano
remou até o Grecian, se dizendo ser John Freedman, “súdito de sua majestade
britânica vivendo ilegalmente escravizado no Brasil, e solicitou proteção, no
que foi prontamente atendido”.
Sob a pressão indignada do
povo baiano, vendo sua soberania afrontada, Manoel Messias de Leão, então presidente
da província da Bahia, reclamou às autoridades britânicas a entrega da
embarcação, mas seu capitão, L. S. Tindal, o comandante do todo poderoso Grecian, não deu ouvidos e, tão logo reabasteceu, partiu em direção ao Rio de Janeiro
levando consigo o escravo oportunista e o todo prenhe de dores e tristezas Bella
Miquelina. Naqueles tempos, apesar de proibido, era comum o vai e vem dos
tumbeiros nas costas da província baiana. Os traficantes agiam seguros de
impunidade. Por outro lado, havia um temor crescente na cidade causado pelo
número cada vez maior de africanos circulando. O risco de tensões sociais, os negros
somados eram como uma grande sombra de violenta rebelião que pairava sobre a
cidade, e a possibilidade de introdução de novas doenças aumentavam com a
chegada de cada tumbeiro abarrotado.
A tripulação do Bella
Miquelina era composta por 29 pessoas. Eles faziam um verdadeiro bate-e-volta
Província da Bahia/Costa Ocidental da África/Província da Bahia. Tinham que ser
rápidos, isso ajudaria a diminuir os custos da viagem e a possibilidade de
serem pegos por alguma embarcação do esquadrão antitráfico britânico. Mas toda
essa rapidez levava em torno de dois meses, o que resultava no próprio
sacrifício da “carga”. Em média, 10% dos negros transportados não chegavam à
Bahia. Em geral, os barcos dedicados ao comércio do tráfico agiam em dupla
cooperativada: um primeiro “navio deixava o porto de Salvador com produtos
legalmente comercializáveis na costa africana e, camuflado em meio a estes,
também levava mantimentos e equipamentos para realizar o transporte dos
africanos. Dias depois, o verdadeiro navio negreiro partia em lastro para o
litoral da África, e em determinado local recebia todo o aparato necessário ao
transporte de cativos”.
Seguir viagem para o Rio de
Janeiro após apreendido o barco contraventor era o procedimento básico protocolar
da esquadra inglesa. Mas o mau tempo e as condições precárias em que se
encontrava o Bella Miquelina alteraram os planos de navegação obrigando que o
barco fosse conduzido ao porto de Salvador. No caminho, ainda sob forte
tempestade marítima, comum àquela época do ano, as duas naus se separaram e o
tumbeiro desprotegido da nave escolta chegou bem antes às águas tensas do
ancoradouro baiano. A notícia logo se espalhou causando enorme comoção entre a
população indignada, não pelas condições ultrajantes em que se encontravam
aqueles miseráveis quinhentos africanos, mas por conta de verem a soberania de
seu País sendo ultrajada pela arrogância inglesa. Desde 1845, após a aprovação
pelo Parlamento britânico do Brasilian Slave Trade Act - Bill Abeerden, lei que
proibia o tráfico transatlântico, que os ingleses desistiram das investidas
diplomáticas e partiram para as vias de fato, ainda que os fatos ocorressem em
território estrangeiro. A postura britânica exemplificada pela atuação do Grecian
em águas brasileiras foi alvo de duras críticas daqueles que, de alguma forma,
se beneficiavam do sistema escravista, a grande maioria dos baianos, e parte da
imprensa que sustentava a continuidade da escravidão “defendendo que sua
extinção só poderia ocorrer após uma série de preparativos, de forma a evitar
prejuízos”.
Quanto aos negros
escravizados a bordo do Bella Miquelina temos poucas informações. Segundo dados
do Trans-Atlantic Slave Trade Database (TASTD),
inicialmente o barco teria sido carregado no Golfo do Benim, Costa dos Escravos
e, os sobreviventes, após longa sequência de infortúnios (o sequestro original,
a marcha forçada até o local de embarque, a prisão à espera de destino ignorado,
os porões completamente insalubres de comprimidas naus, a falta de alimentos, as
doenças variadas e as tempestades em alto mar), foram finalmente libertados em
Serra Leoa. Em meados do século XVIII, os navios negreiros “transportavam, em
média, entre 1,5 e 2,5 africanos por toneladas”. “O Bella Miquelina, embarcação de 263 toneladas, refletia essa
tendência ao ser abordada pelo cruzador britânico”. Nele, “possivelmente os
traficados enfrentaram quarenta longos dias de confinamento sob as condições
mais adversas”. Muitos deviam portar marcas e cicatrizes tribais. Cerca de 30%
eram meninos e meninas.
Barganhas e Querelas da Escravidão
Esse é apenas um breve resumo de um dos dez capítulos escritos pelos membros do grupo de pesquisa Escravidão e Invenção de Liberdade, no segundo volume da série que tem como base o Programa de Pós-Graduação em História da Ufba. Os textos são acessíveis, reveladores, ricos em informações, fruto de pesquisa comprometida e apaixonada e, como se não bastasse, escritos quase como narrativas de aventura, o que ajuda a democratizar a literatura de academia. O primeiro volume, Escravidão e suas sombra [2], foi lançado em 2012. Vida longa a esse belo trabalho de resgate de nossa riqueza histórica esquecida sobre os escombros culturais da velha Bahia.
[1] Breve a partir de GRADEN,
Dale T; e JESUS, Paulo Cesar Oliveira de, Tráfico de africanos, tensões,
medos e luta por liberdade nas águas da Baía de Todos-os-Santos em 1848. in: CASTILLO,
Lisa Earl; SAMPAIO, Gabriela dos Reis; e ALBURQUEQUE, Wlamyra (Orgs.), Barganha e Querelas da Escravidão: Tráfico,
Alforria e Liberdade, séculos XVIII & XIX, -- Salvador, EDUFBA, 2014.
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